Pular para o conteúdo principal

A era do não, por Carlos Andreazza

O carioca tapou o nariz e digitou o número por meio do qual daria um não a Freixo, à esquerda, sobretudo um não aos que chamam de golpistas aqueles a favor do impeachment

Ainda por muito tempo o carioca digerirá o fracasso de haver chegado ao fim do ano em que sediou uma Olimpíada tendo, no entanto, de escolher um prefeito entre os retrocessos Marcelo Crivella e Marcelo Freixo, homens de séculos passados, um duro golpe na ideia de cidade cosmopolita conforme a ilusão de quem não faz ideia do que seja uma cidade cosmopolita.

Mais do que a crise em que a fantasia criminosa decorrente da associação entre Lula e Sérgio Cabral Filho — entre PT e PMDB — afundou o estado, mais do que o esfacelamento da mentira chamada de UPP, mais do que o anel de R$ 800 mil no dedo da primeira-dama do fanfarrão cujo desejo de ascensão irresponsável ora resulta em servidores sem salário, mais do que a acefalia de ter dois governadores e ter nenhum, mais do que o fato dolorido de serem daqui patriotas do naipe de Eduardo Cunha e Jorge Picciani, mais do que a constatação de que o legado desses estadistas é a paralisia moral em que nos atrasamos, aquilo que melhor representa a depressão profunda do Rio de Janeiro, a doença do Rio de Janeiro, é a disputa, na capital, de um segundo turno que, em pleno ano da graça de 2016, confronte um representante da Igreja Universal, com seu projeto de poder hostil à liberdade, e um do PSOL, o partido em cujo nome o socialismo — de acordo com sua tradição — tenta aprisionar um valor que lhe é oposto e inconciliável; de novo: a liberdade, essa hostilizada.

Eis o retrato na parede de um Rio que se desconversou; cidade cuja população se orienta — e quem dirá que está errada? — para rejeitar, para repelir, para dizer não.

A eleição municipal carioca teve dois turnos. Ambos de natureza plebiscitária. Tanto faz se no primeiro ou no segundo, a maioria dos eleitores ou se absteve — numa alarmante manifestação contrária à política — ou votou contra. De início, contra o PMDB fluminense, contra Cabral, Pezão e Cunha, contra o prefeito olímpico Eduardo Paes — que se acreditou, talvez pelos anos de convivência com Lula, capaz de eleger um poste; no caso, um cassetete. Depois, com o páreo reduzido a somente dois pangarés, numa campanha cujo baixíssimo nível serviu para desnudar os monges, o cidadão do Rio tapou o nariz e digitou o número por meio do qual daria um não a Freixo, ao PSOL, à esquerda — mas principalmente um não aos que chamam de golpistas aqueles a favor do impeachment de Dilma Rousseff. Não menospreze isso, leitor.

Que Crivella, portanto, nem por um segundo se imagine consagrado pelas urnas. Será erro grave de avaliação. Ele, que já disputou e perdeu algumas eleições para prefeito e governador, tampouco venceu esta. Ou, experiente que é, compreende o recado, ou terá mandato turbulento para muito além dos problemas decorrentes da real situação financeira do município (que logo descobrirá) — porque ainda vai apanhar muito, e sem ter um Freixo para fazê-lo de “menos pior”. Esse, aliás, é o ponto.

A forma como Crivella resistiu, com poucos abalos, a tantas acusações no curso do segundo turno — inclusive àquela encarnada pela foto de sua prisão — não lhe é mérito, ao menos não primordialmente, e embute, na explicação, o motivo pelo qual tanto trabalhou por ter Freixo como oponente na rodada final. Fosse seu adversário qualquer outro — Pedro Paulo, Flávio Bolsonaro, Indio da Costa ou Carlos Osorio — e teria hoje mais uma derrota para chamar de sua.

Contra Freixo, contudo, beneficiou-se — até Garotinho se beneficiaria (para que o leitor avalie a força do fenômeno) — de um voto de repulsa ao PSOL e a tudo quanto este partido significa, compreendido que é, com bom humor, como a linha auxiliar circense do PT; como DCE para recreio de marmanjos. E, não importando o humor, como o sustentáculo político do criminoso “movimento” black bloc; como o partido que concorreu à prefeitura do Rio, numa eleição no século XXI, em coligação com o Partido Comunista Brasileiro. Repito: Partido Comunista Brasileiro. Repito: Partido Comunista Brasileiro — aquele de Mauro Iasi, o poeta que cita Bertold Brecht para incitar o assassinato dos inimigos conservadores.

Administrando os engulhos, pois, o carioca engoliu tudo o que havia contra Crivella, que igualmente despreza, para não eleger aquele em quem identifica perigos maiores do que os representados por ter a Igreja Universal à frente do município.

A cidade, afinal, fez uma escolha entre desonestidades.

Enquanto trata (espero que trate) de suas chagas políticas, o cidadão do Rio de Janeiro talvez não tenha tempo (certamente não tem motivo) para se envaidecer com a leitura segundo a qual sua eleição municipal antecipou e experimentou o cenário eleitoral de 2018; mas assim é, assim será: o brasileiro elegerá seu próximo presidente, entre muitos candidatos, num plebiscito em que dirá sobretudo não.

Sabemos a quem — a o quê — se destinará o não. O desafio é observar o tabuleiro e ver qual o bispo que avança.

Carlos Andreazza é editor de livros

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Com corona ou sem corona, dia 15, eu vou!

Em tempos de corona virus, pode parecer estranho, mas, fica mais importante ainda comparecer à manifestação do próximo dia 15. Contra as tentativas sórdidas de congressistas de alto coturno, jornalistas militantes e parte do judiciário, de usurpar poderes, prejudicar ações, e evitar que governe conforme o mandato que lhe concederam, é preciso demonstrar de forma cristalina que o presidente está, cada vez mais, com apoio popular, e que o desejo de que prossiga com as reformas do Estado, o combate à corrupção e à esquerda tacanha, gananciosa e cretina continua firme e forte. O sistema de governo é presidencialista, e isso já foi decidido há mais de 25 anos, quando se jogou uma montanha de dinheiro fora pra oficializar o que todo mundo sabia. É, portanto, intolerável que um presidente eleito, ainda que pairem dúvidas sobre a lisura do pleito, não consiga dar um passo sem que membros vetustos e caquéticos do STF não só opinem como trabalhem contra ele. Que a imprensa a tudo critiqu...

História do Filho da Puta

John Frederick Herring (1795 - 1865) foi um conhecido pintor de cenas esportivas e equinas, na Inglaterra. Em 1836, o autor do famoso quadro "Pharaoh's Charriot Horses", avaliado em mais de $500.000, acrescentou "SR" (Senior) à assinatura que apunha em seus quadros por causa da crescente fama de seu filho, então adolescente, que se notabilizou nessa mesma área. Apesar de nunca ter alcançado um valor tão elevado, um outro de seus quadros tem uma história bastante pitoresca. Em 1815, com apenas 20 anos, Herring, o pai, como era tradição, imortalizou em um quadro a óleo o cavalo ganhador do St Leger Stakes, em Doncaster, na Inglaterra. Até aí, nada de mais. A grande surpresa é o nome do animal: Filho da Puta! É isso mesmo. Filho da puta. Há pelo menos três versões sobre a origem desse estranho nome. A que parece mais plausível (e também a mais curiosa), dá conta que o embaixador português na Inglaterra, à época, era apaixonado por turfe e também por uma viúva com q...

Ibsen - inimigo nº 1 do Rio

Separados no nascimento O deputado Ibsen Pinheiro acaba de se tornar o inimigo público número 1 do Rio de Janeiro. Além de aprovar um projeto estapafúrdio, repleto de inconstitucionalidades, apareceu no Jornal Nacional declarando que os cariocas não sabem o que fazem. De uma só tacada desqualificou o protesto contra a emenda que ontem reuniu, segundo a PM, mais de 150 mil pessoas no centro do Rio, comparando-o à passeata dos cem mil, e ainda desancou os cariocas, prevendo que ficaremos sem nada. Em primeiro lugar, Ibsen comete uma imbecilidade histórica: a Passeata dos Cem Mil não foi de apoio à revolução de 64, como sugeriu, e sim, contra o governo militar, tendo sido organizada em 68, pelo movimento estudantil, com apoio de artistas, intelectuais (eu detesto essa classificação. Afinal, você conhece alguém que se identifica como intelectual? "Prazer, sou um intelectual". Que imbecilidade!) e setores da sociedade. O gaúcho idiota, que já teve o mandato injustamente cassado e...