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Lula: a desconstrução do mito, por Jorge Maranhão


Ele cometeu o maior erro de um político, o de acreditar no próprio mito como se fosse infalível e perder o senso de limite

Em sua seminal obra "Mito e realidade", o filósofo romeno Mircea Eliade, longe de opor mito e realidade, como comumente fazemos, postula sua integração: “O mito é considerado uma história sagrada e, portanto, uma ‘história verdadeira’, porque sempre se refere a realidades. (…) o mito se torna o modelo exemplar de todas as atividades humanas significativas”. O pensador se referia principalmente às sociedades primitivas, mas essa compreensão é fundamental para o entendimento do mito no mundo moderno. Ser ou servir de exemplo é a chave utilitária do mito, tanto numa história fantástica, como personificado em alguém com projeção numa determinada sociedade. Este último caso é o que nos interessa no momento.

Todos os países têm os seus mitos. Personagens que servem de exemplo de conduta e de esperança no futuro. Sobretudo mitos políticos como condutores dos destinos de um povo. Nos Estados Unidos, Washington, Jefferson, Franklin, Lincoln, e mais recentemente Kennedy, tornaram-se protagonistas de narrativas  de coragem e superação, lealdade e compromisso para com seus concidadãos,  para além mesmo de seus predicados pessoais. Em comum a todos eles, o fato de que já estavam mortos ao serem alçados ao panteão dos mitos. E, assim, a sua desconstrução é tarefa difícil, na medida em que não estão mais sujeitos a erros triviais de conduta e de suas narrativas. Sua imagem passa a ser fantástica e  "congelada" no tempo, nas mentes e corações do povo.

Já no Brasil, temos essa contradição em termos: nossos mitos estão - ou estavam - vivos quando de sua transmutação. Talvez pela tradição do sebastianismo, mas seguramente pela maior crendice e demanda pelo mágico, temos pressa em mitificar nossos líderes. A começar pelo imperador Dom Pedro II, alcunhado de “o magnífico”, mas que preferia ser chamado de “patrono das artes e ciências”. Ou o gaúcho Getúlio Vargas, o pioneiro e eterno "pai dos pobres" como se fez conhecido. E seu grande rival, Luiz Carlos Prestes, “o cavaleiro da esperança” - tão caro aos nossos progressistas narradores. Mais recentemente, o mineiro Juscelino Kubitschek, “o presidente bossa nova”, dos 50 anos em 5, encarnou a promessa máxima de nossa tradição populista de providencialismo.

Mas eis que, no estertor da ditadura, surge o maior dos nossos mitos políticos. O Lula lá iria nos redimir de ditadores, corruptos e ineptos. O nordestino forte e aguerrido, vencedor na vida, defensor dos pobres, primeiro trabalhador que chegou ao maior posto político da nação, dando um quinau nos ricos malvados e elitistas do país. Que bela imagem mística! Operando na realidade de que o mito se constrói para além dele mesmo, mais pela demanda dos crentes do que pelos seus atributos imanentes. O problema, todavia, é que Lula não morreu para congelar este enredo vitorioso de um povo que só experimenta derrotas. Está bem vivo, como ele próprio anda dizendo ultimamente. E então, vida seguindo, a desconstrução do mito fica inevitável. Não pela ação de seus desafetos políticos, mas por suas próprias decisões de não corresponder às demandas de seus eleitores. De mito das maiores virtudes morais do imaginário social, Lula passou a frequentar a mídia com os percalços e vícios do mais mortal dos homens. Mais um político típico de nossa fauna, a peça-chave da engrenagem de uma organização acusada de quebrar a maior empresa nacional, de tráfico de influência, de lavagem de dinheiro público, de rombos bilionários em fundos de pensão, de associação com ditaduras planeta afora, de empréstimos milionários a fundo perdido para governos amigos, de uma dívida pública trilionária. Sem falar do desemprego recorde, da inflação renitente e de um estado de caos social equivalente ao de muitos países em guerra. O príncipe que virou sapo. O rei que ficou nu.

Seu erro? O maior erro de um político: o de acreditar no próprio mito como se fosse infalível e perder o senso de limite e a prudência dos verdadeiros líderes. De achar que, como tal, estaria acima das leis e dos códigos de valores morais que regem todos os mortais. Que poderia ignorar um dos mais célebres ensinamentos de Kant, a regra de ouro das normas morais, a qual provavelmente ele nunca leu, mas cujo sentido certamente lhe legou Dona Lindu, sua humilde e honrada genitora: "Tudo o que não puder contar como fez, não faça". Ungido como fenômeno de liderança civil num país e num mundo sedento de novas práticas e formas de representação políticas, o sindicalista versão latino-americana de Lech Walesa, caiu como uma luva no vazio de figuras carismáticas que o povo sempre cultivou no seu imaginário romântico-salvacionista. Mas, o que se pode atribuir cinicamente à deseducação do povo, não deve servir de álibi para a omissão de civismo de suas elites. Mais civismo, menos cinismo, como resumiu o roqueiro Paulo Ricardo.

Se Dom Pedro II, Getúlio, Prestes e Juscelino sempre tiveram consciência de que desempenhavam um papel mítico de um povo, nosso Lula acreditou que pudesse encarnar de fato “o cara”, na missão de “nosso guia”. Sem o pejo de desconfiar da ironia desses tratamentos. Este mesmo Lula que um belo dia achou que poderia até mesmo tripudiar da crença do povo, quando desafiava a opinião pública se aliando a figuras como Sarney e Maluf, na arrogância dos ignorantes de que pode negociar com o Diabo e permanecer santo, coisa que nem Padim Ciço ousou. Pois este mesmo Lula, na semana passada, no programa de TV de seu partido, disparou o velho discurso de ódio, tal qual um Quixote delirante, agigantando um inimigo inexistente para jactar mais ainda suas destrezas de herói. E jogou para a plateia: - "no fundo incomoda essa gente que não gosta de dividir as poltronas dos nossos aviões com o nosso povo". Como se essa fosse de fato uma preocupação da classe média no Brasil, um país formado por cidadãos cada vez mais conscientes, os mesmos que dão à presidenta Dilmandona menos de 10% de aprovação. Um país reconhecidamente integrador, povoado e amado por múltiplas etnias e nacionalidades. Um consenso amplo de cordialidade, que vai de progressistas como Darcy Ribeiro a conservadores como Gilberto Freire.

Nosso ex-presidente, nosso ex-mito desencarnado em vida, tal qual o boneco inflado onipresente em manifestações de norte a sul do país, vergonhosamente alcunhado de Pixuleco, tem sido recebido ao som de panelaços e buzinaços. Lula ainda não entendeu que está ruindo junto com ele o próprio mito do Brasil potência, igualitarista, providencialista, de liberdades sem limites, direitos sem deveres e arremedos de welfare state - caro, ineficiente, injusto e que funciona apenas para os círculos próximos do poder, os tais 25 mil cargos comissionados aparelhados pela companheirada sindicalista cuja ideologia esquerdista e anacrônica já morreu.

O achincalhamento público reclamado por sua equivocada defesa resulta de sua própria irresponsabilidade política. O mito tinha pé de barro. E hoje se esfarela em plena praça, meio ao lamaçal das investigações criminais do Lava-jato. A  cada dia, o “nosso guia” tem sido destratado como nunca antes na história deste país uma figura pública foi. O ex-herói que se desconstrói em nosso imaginário como o forçoso ingresso a se pagar para uma maioridade política de cidadãos livres e responsáveis pelas suas escolhas. Como postulava Eliade, "ser livre significa em primeiro lugar ser responsável para consigo mesmo".


*Jorge Maranhão é mestre em filosofia pela UFRJ e diretor do Instituto de Cultura de Cidadania A Voz do Cidadão

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