por Carlos Alberto Sardenberg
publicado n'O Globo, de 17/1/2013
Tem pessoas assim: dizem uma coisa, fazem outra. Mentirosas ─ é a interpretação que ocorre imediatamente. E, se solicitados exemplos, quase todo mundo dirá: governantes, políticos, deputados e senadores em especial etc.
Mas isso é senso comum. Podemos complicar a história. E quando as pessoas acreditam mesmo que fazem o que dizem, embora haja notória diferença entre discurso e atos?
Por exemplo: a pessoa jura que está fazendo regime, mas só engorda. A tendência imediata é desqualificá-la: quem pensa que está enganando?
Pois pode acontecer diferente: a pessoa acredita genuinamente que faz regime e que só não emagrece por algum outro fator, criado na sua imaginação: “Dieta não funciona comigo.”
Esse tipo de pessoa vê o mundo através de suas ideias exclusivas ou suas fobias. Ressalva: sim, todos vemos o mundo através de nossa subjetividade, mas é preciso admitir que conseguimos perceber (ou construir, vá lá) alguma objetividade. Dito de outro modo: temos nossos desentendimentos e mal-entendidos ─ e disso, por exemplo, se alimenta a literatura ─, mas vemos, vivemos e transitamos numa mesma realidade fundamental.
Considerem, por outro lado, um caso patológico clássico: a menina de 1,70 metro, 40 quilos, olha-se no espelho e vê uma gorda. Ela não está mentindo. Sofre de distorção da imagem corporal. É o extremo, mas muita gente normal tem dificuldade na adequada visão e interpretação dos fatos.
Será que o pessoal da equipe econômica do governo Dilma sofre de coisas parecidas? Claro, não estamos chamando ninguém de louco, mas tem havido muitos episódios de distorção de imagem.
Caso do superávit primário, por exemplo. Todo mundo sabe de que se trata: o resultado das receitas do governo menos as despesas não financeiras. Em termos mais comuns: “A economia que o governo faz para pagar juros da dívida.”
Claro, há divergências razoáveis na realização da conta. Receitas e despesas podem ser classificadas de diferentes maneiras, isso logicamente alterando o resultado final.
Mas as operações feitas pelo governo Dilma para alcançar a meta do superávit do ano passado são tão distorcidas que mesmo aliados próximos ficaram envergonhados. E não esconderam isso.
Eis o quadro, portanto: o governo diz que alcançou uma determinada meta de superávit, mas todo mundo sério sabe que não é verdade. O número real saiu menor.
Mais complicado ainda: todos os aliados e muitos não aliados, inclusive de instituições internacionais, observavam já há tempos que o governo tinha bons motivos para reduzir a meta daquele superávit. Diziam: gastando menos com juros, já que as taxas caíram, a economia necessária para reduzir a dívida pública é menor.
Logo, pode não ser, mas parece coisa de louco: o governo Dilma poderia ter aplicado uma redução do tal primário — ou “adequação”, se o marqueteiro fizesse questão ─ que a coisa passaria. Em vez disso, rouba nas contas para anunciar um resultado que todos sabem ser falso. O governo mentiu por nada, disse um aliado.
Questões: será que a presidente e seu pessoal acreditam mesmo nas suas contas? Ou acharam que ninguém perceberia a fraude? Ou acharam que as pessoas poderiam perceber, mas e daí?
Acontece a mesma coisa com a taxa de câmbio. Em um determinado momento do ano passado, ficou óbvio: toda vez que a cotação do dólar ameaçava passar dos R$ 2,10, o governo vendia moeda americana e derrubava a taxa; toda vez que a taxa, inversamente, ameaçava cair abaixo de R$ 2,00, o governo comprava dólar e puxava cotação para cima.
Com ficou assim por um bom tempo, estava na cara: acabou o regime de câmbio flutuante, temos uma banda de variação cambial.
Negativo, responderam os representantes do governo, o dólar flutua como antes. Já escolados, operadores e analistas simplesmente deixaram pra lá. OK, diziam, não tem banda, mas, se você não quer perder dinheiro, aja como se tivesse.
Lá pelas tantas, porém, final do ano passado, a presidente Dilma disse que seu governo queria um real mais desvalorizado. O ministro Mantega chegou a sugerir cotação perto dos R$ 2,40.
Como, de fato, o dólar se aproximava dos R$ 2,10 e o governo parecia quieto, o pessoal concluiu: vai furar o teto da banda ou a banda vai para um patamar acima. Nesse momento, o BC entra vendendo dólar e a cotação volta a cair.
Questões: o governo acredita mesmo que não tem a banda cambial? Ou simplesmente acha que é melhor ter e dizer que não tem? Ou existe um teto, de fato, de R$ 2,10, mas o governo preferia que não tivesse?
A presidente Dilma e seus assessores foram historicamente contra o famoso tripé da era FHC, superávit primário, câmbio flutuante e metas de inflação. Pelos atos atuais, estão desarmando o tripé. No discurso, porém, juram que são fiéis praticantes do sistema.
Resulta em dupla distorção: da política real e das ideias.
publicado n'O Globo, de 17/1/2013
Tem pessoas assim: dizem uma coisa, fazem outra. Mentirosas ─ é a interpretação que ocorre imediatamente. E, se solicitados exemplos, quase todo mundo dirá: governantes, políticos, deputados e senadores em especial etc.
Mas isso é senso comum. Podemos complicar a história. E quando as pessoas acreditam mesmo que fazem o que dizem, embora haja notória diferença entre discurso e atos?
Por exemplo: a pessoa jura que está fazendo regime, mas só engorda. A tendência imediata é desqualificá-la: quem pensa que está enganando?
Pois pode acontecer diferente: a pessoa acredita genuinamente que faz regime e que só não emagrece por algum outro fator, criado na sua imaginação: “Dieta não funciona comigo.”
Esse tipo de pessoa vê o mundo através de suas ideias exclusivas ou suas fobias. Ressalva: sim, todos vemos o mundo através de nossa subjetividade, mas é preciso admitir que conseguimos perceber (ou construir, vá lá) alguma objetividade. Dito de outro modo: temos nossos desentendimentos e mal-entendidos ─ e disso, por exemplo, se alimenta a literatura ─, mas vemos, vivemos e transitamos numa mesma realidade fundamental.
Considerem, por outro lado, um caso patológico clássico: a menina de 1,70 metro, 40 quilos, olha-se no espelho e vê uma gorda. Ela não está mentindo. Sofre de distorção da imagem corporal. É o extremo, mas muita gente normal tem dificuldade na adequada visão e interpretação dos fatos.
Será que o pessoal da equipe econômica do governo Dilma sofre de coisas parecidas? Claro, não estamos chamando ninguém de louco, mas tem havido muitos episódios de distorção de imagem.
Caso do superávit primário, por exemplo. Todo mundo sabe de que se trata: o resultado das receitas do governo menos as despesas não financeiras. Em termos mais comuns: “A economia que o governo faz para pagar juros da dívida.”
Claro, há divergências razoáveis na realização da conta. Receitas e despesas podem ser classificadas de diferentes maneiras, isso logicamente alterando o resultado final.
Mas as operações feitas pelo governo Dilma para alcançar a meta do superávit do ano passado são tão distorcidas que mesmo aliados próximos ficaram envergonhados. E não esconderam isso.
Eis o quadro, portanto: o governo diz que alcançou uma determinada meta de superávit, mas todo mundo sério sabe que não é verdade. O número real saiu menor.
Mais complicado ainda: todos os aliados e muitos não aliados, inclusive de instituições internacionais, observavam já há tempos que o governo tinha bons motivos para reduzir a meta daquele superávit. Diziam: gastando menos com juros, já que as taxas caíram, a economia necessária para reduzir a dívida pública é menor.
Logo, pode não ser, mas parece coisa de louco: o governo Dilma poderia ter aplicado uma redução do tal primário — ou “adequação”, se o marqueteiro fizesse questão ─ que a coisa passaria. Em vez disso, rouba nas contas para anunciar um resultado que todos sabem ser falso. O governo mentiu por nada, disse um aliado.
Questões: será que a presidente e seu pessoal acreditam mesmo nas suas contas? Ou acharam que ninguém perceberia a fraude? Ou acharam que as pessoas poderiam perceber, mas e daí?
Acontece a mesma coisa com a taxa de câmbio. Em um determinado momento do ano passado, ficou óbvio: toda vez que a cotação do dólar ameaçava passar dos R$ 2,10, o governo vendia moeda americana e derrubava a taxa; toda vez que a taxa, inversamente, ameaçava cair abaixo de R$ 2,00, o governo comprava dólar e puxava cotação para cima.
Com ficou assim por um bom tempo, estava na cara: acabou o regime de câmbio flutuante, temos uma banda de variação cambial.
Negativo, responderam os representantes do governo, o dólar flutua como antes. Já escolados, operadores e analistas simplesmente deixaram pra lá. OK, diziam, não tem banda, mas, se você não quer perder dinheiro, aja como se tivesse.
Lá pelas tantas, porém, final do ano passado, a presidente Dilma disse que seu governo queria um real mais desvalorizado. O ministro Mantega chegou a sugerir cotação perto dos R$ 2,40.
Como, de fato, o dólar se aproximava dos R$ 2,10 e o governo parecia quieto, o pessoal concluiu: vai furar o teto da banda ou a banda vai para um patamar acima. Nesse momento, o BC entra vendendo dólar e a cotação volta a cair.
Questões: o governo acredita mesmo que não tem a banda cambial? Ou simplesmente acha que é melhor ter e dizer que não tem? Ou existe um teto, de fato, de R$ 2,10, mas o governo preferia que não tivesse?
A presidente Dilma e seus assessores foram historicamente contra o famoso tripé da era FHC, superávit primário, câmbio flutuante e metas de inflação. Pelos atos atuais, estão desarmando o tripé. No discurso, porém, juram que são fiéis praticantes do sistema.
Resulta em dupla distorção: da política real e das ideias.
Comentários
Ahhh, a falta que faz uma oposição digna desse nome............